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maio 08, 2013

Crítica: sensível, 'O Som ao Redor' reflete uma classe média fragmentada e infeliz

Aos mais ansiosos, longa requer cautela e pode perfurar seus tímpanos com um estridente silêncio 


Se tem uma caraterística que pode definir o longa nacional O Som ao Redor (2013), é ser silencioso.  Esse artifício encontrado pelo diretor Kleber Mendonça Filho para retratar a classe média atual, entrega bem a proposta de refletir uma sociedade que vive a miséria da cultura dos condomínios. Em uma única rua, cada um vive em seu território, sofre de ansiedade, vive o medo da violência e se controla com a vigilância digitalizada oriunda de apetrechos tecnológicos. Se entorpece com calmantes ou com maconha. O silêncio da fala, logo evoca os ruídos de um coletivo nervoso (como o risco na lataria do carro), que à qualquer momento pode explodir. A realidade vazia (como uma peça desconectada) ecoa o silêncio de um individualismo à mercê da acomodação de pessoas cada vez mais apáticas, melancólicas. O filme é uma explosão sonora, barulhenta aos ouvidos dos menos preparados, àqueles acostumados com o cinema contemporâneo, banalizado pelo tom fabricado, por vezes, violento... robótico.

A trama, contada de forma fragmentada e pessimista, envolve uma rua na cidade de Recife, que, em meio à casas comuns (cada vez mais raras), contrasta os imponentes prédios que na verdade pouco refletem a cultura da região - podendo facilmente se encaixar como qualquer outra cidade tão ou mais desenvolvida economicamente quanto. Dá pra lembrar de É Proibido Fumar (2009) de Anna Muylaert, sendo esta, um pouco menos impactante. Os personagens são os representantes da classe média, essa que tem cada vez um maior poder de compra, mas ao mesmo tempo vive o abismo cultural e social. A história segue com realismo três núcleos divididos em três períodos: um é uma dona de casa que não suporta o cão do vizinho que insiste em latir o tempo todo; o outro é uma rica família que herda do interior uma criação colonialista; e, por último, vigilantes de segurança privada que encontram naquele ponto uma boa oportunidade de negócio por causa da violência recorrente.

O diretor, sem nenhuma intenção de poupar o espectador de uma dura realidade, expõe com sensibilidade sua visão anti-capitalista em uma classe média que vive presa em suas casas, prédios, literalmente, atrás das grades. Não polpa filmar através de ferros que formam portões ou simples divisões, dá enfase no abrir e fechar das portas e deixa bem claro os muros que cercam seus moradores dos vizinhos. Expõe os ruídos na comunicação interpessoal, a grosseria em diversos níveis. Interliga seus personagens, geralmente, utilizando seus problemas em um único argumento: o sentimento de insegurança. Culpa de uma maneira clara a tecnologia e violência como os males dos novos tempos (infelizmente ignora a política e religião), que além de causar desolação nos adultos, cria crianças presas nos condomínios, cercados pelos brinquedinhos eletrônicos e uma boa TV de tela plana - inclusive, em uma cena de brutalidade, essa é a causa que faz vizinhas se descontrolarem por uma rixa pela soberania de status.

Um dos poucos livres dessa doença generalizada é o jovem corretor de imóveis João (Gustavo Jahn) que, mesmo da sua maneira apática, vai contornando a falta de comunicação em sua família rica que herdou pela parte do tio, uma ideologia conservadora na posse de territórios. É ele que, destemido, enfrenta o mimado primo que comete roubos pela região; defende o idoso porteiro do condomínio que é acusado de fazer corpo mole no trabalho (a cena da reunião é fantástica, um bom reflexo da atual cultura difundida pela mídia em que todos são juízes e não se importam pelo contexto de cada história); se preocupa com o bem estar de empregados; e mergulha na história de sua família - visitando o agora assombrado lugar em que viveu. Ele e sua namorada, são os únicos que parecem sentir saudades do passado, respeitar o que viveram e, literalmente, procurar sentir as lembranças que ficaram encrostadas (mesmo com boa mão de tinta por cima). Colocam pra fora quando encontram segurança na natureza. Gritam de desespero escondidos da selva urbana. Mendonça ainda filma um velho cinema em ruínas (mas cheio de sons prazerosos e nostálgicos), numa clara alusão aos meios de distribuição dos filmes hoje em dia.

O núcleo da dona de casa entediada (Maeve Jinkings) e que vai levando sua família à beira de um abismo, ou ao seu ver, ao espetáculo - o diretor ainda debocha ao mostrar os filhos estudando chinês, sendo inexistente a comunicação na própria família (o futuro econômico é mais importante) - é no mínimo aterrador. O tédio que toma a forma de um latido perturbador (só ela se incomoda), vai fazendo-a traçar planos para manter o bem estar. Com a tecnologia ao seu favor, ela fuma maconha, toma pílulas para dormir, se masturba com a máquina de lavar, e por aí vai. O cachorro, que antes representava um cão de guarda, se tornou um incômodo. O remorso em maltratar o bicho some e a ação final para calá-lo denota a malvadeza quase como um fetiche. Curiosamente, isso se define um barulho ensurdecedor para o filho - repare como a filha acaba entrando na onda dos pais, logo após um pesadelo moderno (a casa sendo assaltada).

Em outra vertente, com o descaso da segurança pública (ou excesso de medo?), se tornou comum uma vigilância privada, da qual, indivíduos se oferecem para a comunidade pelo serviço na troca de um valor (aqui na minha rua é quatro vezes mais caro do que no filme). Claro, que a população desconfia, mas quem é o louco de recusar e se vê como vítima, caso a equipe seja golpista? Eles logo entram em atrito com a família que a hierarquia segue os moldes do colonialismo que se mostra hereditário, com o jovem primo de João peitando os seguranças e de forma risível, pedindo respeito - como um "marginal favelado", e ironicamente dizendo que ali não era uma favela para eles tomarem conta. O caminho entre eles acaba indo além, e desdobrando ações do passado, provavelmente, culminado numa tragédia. A ética desses trabalhadores também é mostrada - pondo em prática o jeitinho brasileiro, seja para matar o serviço e entrar na casa do cliente "ausente" para transar. A violência desses vigilantes contra uma criança que escalava árvores tarde da noite, guarda uma cena emblemática - ainda mais em tempos de discussões sobre maioridade penal.

O único momento essencialmente feliz no filme, além de um almoço entre João, a namorada e o pai, é o aniversário de uma adolescente, em que, reúne alguns dos personagens principais. João reclama da falta de animação da festa com o primo - a briga entre eles nem sequer deixou sequelas - e coloca em cheque a falsidade evidente ao redor - a obrigação de estar ali. O diretor não perde a oportunidade ao dar uma alfinetada (cada vez mais necessária) no imperialismo cultural americano e sua filosofia do jovem conquistar o estrelato: duas garotas encenam de forma afetada uma passagem de High School Musical (duas personagens bem descritas, a assistente glamourosa da patricinha popular e essa aspirante à estrela pop) e logo mostra no escuro, ao fundo a empregada (fazendo expediente como garçonete). A mesma escuridão onde se esconde o solitário porteiro.

A vontade maior é dissecar esse ótimo filme ato por ato, cena por cena, mas cabe também como exercício de cada um refletir à sua maneira. Com atuações em sua maioria naturais e situações que não fogem do cotidiano brasileiro, Kleber Mendonça entrega ao receptor uma obra quase em seu estado bruto e o desafia à comparar e entender sua intenção com a realidade. Bruto não significa mal acabada, mas sim em um estado puro. São belos enquadramentos e uma edição que assume o protagonismo do filme. Essa sensibilidade de O Som ao Redor deixa claro que se trata uma obra contemplativa, mesmo que um tanto ideológica, com um tom quase documental e certamente aterradora. Economiza na trilha sonora como fez o impactante austríaco Amor (Amour, 2012) - afinal, a vida não é feita com ela - e mostra, com um certo exagero, o quão insensível e cruel essa classe tem se tornado com os adornos capitalistas (até um suicídio pode virar desculpa para uma pechincha). Por fim, faz o silêncio virar uma metáfora para a inquietação da sociedade e seus moradores cada vez mais sem ter o que pensar e, muito menos, o que dizer.

Trailer:

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